Às vezes alguém abre uma janela que torna mais clara a nossa visão do mundo. Isso aconteceu comigo quando o autor israelense Yuval Harari disse, durante uma entrevista recente, que os únicos exemplos de democracia antes da era moderna ocorreram em cidades-Estado como a antiga Atenas. Ele acrescentou que, por falta de tecnologia, “não seria possível haver um debate em larga escala sobre a democracia até o século 18”.
Por extrapolação, percebi que os primeiros debates em larga escala sobre a democracia ocorreram no século 18, devido a uma forma inicial de tecnologia da informação (TI): a impressora de tipos móveis, inventada na Alemanha em meados do século 15 por Gutenberg. Na América colonial, um dos berços da democracia moderna, essa invenção ajudou a produzir jornais cujas informações amplamente distribuídas permitiram aos homens brancos, os únicos que podiam votar, participar de debates estaduais sobre os candidatos presidenciais.
A teoria de Harari me ajudou a perceber que a TI é tão poderosa que suas inovações podem abalar a democracia. Assim, quando o Facebook, o Twitter e o Instagram lançaram suas primeiras redes sociais, em 2004, 2006 e 2010, respectivamente, essa nova forma de TI começou a substituir os jornais. E ao não controlarem adequadamente o que é publicado nas suas páginas, esses gigantes da tecnologia criam redes de desinformação.
O poder das TI de ameaçar a democracia tornou-se ainda mais claro quando o governo russo criou milhares de contas falsas nas redes sociais para difundir um tsunami de notícias falsas que afogou a campanha de Hillary Clinton e ajudou a eleger Trump como presidente dos EUA em 2016. E Trump, um propagandista habilidoso, utilizou tuítes quase diários para espalhar fake news de que Biden roubou as eleições de 2020, uma campanha difamatória que incitou uma insurreição violenta em 6 de janeiro de 2021 para tentar impedir a posse de Biden.
Assim, quando candidatos como Trump e Bolsonaro realizam campanhas presidenciais sofisticadas baseadas nas redes sociais, essa nova forma de TI permite que candidatos autocráticos, uma tendência em ascensão, ganhem eleições e minem a democracia.
A inteligência artificial (IA), a mais nova forma de TI, me preocupa porque à medida que cria imagens manipuladas digitalmente cada vez melhores, que parecem reais —por exemplo, de políticos em situações comprometedoras—, aumenta também a ameaça aos processos democráticos.
Em março, Trump, que tinha alertado que haverá “um banho de sangue” se perder as eleições de novembro, postou em seu site de mídia, Truth Social, um vídeo criado por IA no qual Biden aparecia deitado na caçamba de uma caminhonete com as pernas e braços amarrados, como se tivesse sido sequestrado. Era óbvio que não era real.
Mas, no futuro, a IA poderá tornar mais tênue a fronteira entre fato e ficção, especialmente para eleitores atraídos por candidatos com apetite voraz para violência política, como Trump.
TENDÊNCIAS / DEBATES
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.