Há 22 anos, o talento do quase sessentão diretor carioca Carlos Saldanha ganhou o mundo. Antes mesmo de explorar o frio cotidiano tecnológico como codiretor do longa Robôs e de se aventurar no rastro do ingênuo O touro Ferdinando, Saldanha despontou com atestado de brasilidade, quebrando a glacialidade de A era do gelo. “Cada projeto que eu faço é um novo desafio e cada etapa do filme criado traz um novo aprendizado: nisso projeto muito de mim”, conta, em entrevista ao Correio. Encabeçado por Zachari Levi (de Shazam), Harold e o lápis mágico demanda (e acaba abraçando) várias das qualidades de Saldanha.
“Acho que, como brasileiro, minha aposta é na versatilidade. A gente corre atrás de aprender, e fazer, com vontade. Eu acho que isso aí é o que leva a gente para frente, e esse filme não foi diferente”, destaca o cineasta dos sucessos como Rio (2011), filme que deixou autores da música Real in Rio, como Sergio Mendes e Carlinhos Brown, ambos colocados na cara do gol do Oscar, pela indicação ao Oscar.
Agora, Saldanha trabalha ao lado de dois corroteiristas de Uma noite no museu 3 — O segredo da tumba, David Guion e Michael Handleman, numa fita que adapta o imaginário de Crockett Johnson, influente por gerações. “Apesar de ser um filme live action, eu tento trazer bastante animação como referência. É um filme divertido que tem bastante emoção também. Acho que é uma marca dos meus filmes, esse equilíbrio entre animação e diversão”, pontua. Ultrapassar o limite do impossível, e interagir, na comunhão entre dois mundos (o real e o fictício) leva Harold a desafios, mas sempre apoiado pela versatilidade de seu mágico lápis roxo, onipresente. “Por 28 anos eu fiz meus filmes de animação no meu próprio mundinho, lá nos estúdios no computador, aí quando eu saí da casinha pra poder fazer esse filme foi um desafio muito grande, por ter que trabalhar com os atores”, comenta.
Saído de dentro do ambiente de um livro, Harold vive para desenhar e empreende uma jornada de riscos. Alfred Molina (o Dr. Otto Octavius, de Homem-Aranha) e Zooey Deschanel (de 500 dias com ela e Trolls) estão no elenco do longa. “A maquiagem, a questão das roupas e tudo o que acontece em volta, a luz, era um processo bem diferente, mas eu tive uma equipe maravilhosa que segurou a minha mão dentro desse desafio, e eu aprendi”, diz Saldanha, com humildade. “É uma coisa muito interessante pra mim poder fazer nesse (novo) formato de live action, bastante emotivo, e foi um desafio grande, mas valeu muito a pena”, conclui.
Pensar um Brasil do futuro ainda inquieta o cineasta Igor Bastos, que, aos 23 anos, reflete que se conversa pouco sobre isso: nosso futuro será japonês, com robôs gigantes e led, ou será o distópico americano, a exemplo de Blade runner e Metrópolis?! O intrigante cenário de o Brasil não avançar no tempo deixa lacuna e aguça o senso crítico do cineasta da premiada animação Placa-mãe. “Se não vamos ficar sempre correndo atrás de algum gringo que pensou um destino para nós: é preciso sermos protagonistas como o país de tamanha importância que somos para somar, acrescentar e questionar as visões de futuro que nos empurraram”, nota.
Mesmo que direcionados a públicos diferentes, Placa-mãe e Meu amigo robô (candidato ao Oscar, em 2024) têm sementes comuns. “A aproximação maior é como os aparatos e como nossas relações estão passando pelos avanços tecnológicos”, diz. No filme Igor, a robô Nadi ganha, como cidadã, o direito de adotar um par de crianças. “Fiz um filme que ninguém queria fazer. Uma ficção científica que se passa em Minas Gerais, com músicas clássicas do repertório brasileiro até músicas locais como as de Os Caxambus, que fazem o roça byte, uma espécie de magueBeat da zona rural mineira, com classificação indicativa livre, ao mesmo tempo em que toca temas bem sensíveis”, avalia o jovem cineasta. “Um exemplo clássico da simbiose humano-máquina desponta quando nosso celular dá sinais de que descarregará, ao que respondemos: ‘Eu estou sem bateria’ — o celular já é visto como extensão do nosso corpo”, observa.
Rumos relacionados à ética da robótica, e a aspectos estéticos, funcionais e sociais em visão macro e regional, tomaram tempo da especialização do bacharel em cinema de animação e artes digitais pela UFMG. Preocupações de quando ele tinha 17 anos, em relação às inteligências artificiais e aos impactos que elas trariam, fervilhavam, bem antes da popularização, em 2022, do Chat GPT. Uma vez que o presente “está sempre inundado pelo passado”, como acredita o cineasta, há lógica no que ele completa: “o passado de amanhã é o nosso hoje!” — e, neste imaginário, ele constituiu Placa-mãe. “O cinema é a fraude mais bonita do mundo”, diz Igor, ao citar o mago David Lynch.
“Acho que, ao se fazer um filme, muito jovem, há a armadilha de não se encerrar limites. Nossa equipe nunca media ser possível ou não, mas se perguntava: ‘Como fazer?’. Nisso, se chega a lugares absurdos que, com experiência, você nunca teria tentado”, pontua o artista, filho de um motorista e uma professora. Noutra ponta, coroando absoluta experiência, Igor destaca a participação do produtor executivo Sávio Leite, segundo ele “o maior intelectual do cinema de animação no Brasil”. Apoiado em tudo isso, e com direito à trilha sonora que inclui Caetano Veloso, Milton Nascimento, o “sci-fi da roça” Placa-mãe segue ampliando o circuito de admiradores. Já passou por eventos de filmes independentes em Valência, Madri e Lisboa, tendo ainda sido mostrado no Festival Infantil Tejiendo Cine (Equador) e no New York Internacional Film Awards, além da Mostra de Cinema Infantil de Florianópolis.
Ponto de debate na indústria criativa, o uso de Inteligência Artificial (IA) preocupa o criador do tecnológico Placa-mãe, mas, em menor escala, nas artes, da criatividade e da autoria. “A IA depende do humano para continuar criando, já existem pesquisas de que se a IA apenas se retro-alimenta, ela para de entregar resultados. A criatividade humana precisa continuar avançando para que ela ‘roube’ e entregue algum resultado”, explica. Muito mais tenso é o uso de IA para produzir imagens criminosas contra menores de idade ou aplicar golpes em idosos, pelo que enfatiza. “O mundo precisa de um novo pacto global que faça um tratado único sobre vários temas de software e dados pessoais. As legislações nacionais não têm braços suficientes para impedir atrocidades. Num movimento global, há este desafio”, conclui.
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