“Amazônia está próxima do ponto de não retorno”, diz o cientista Carlos Nobre

A Amazônia está perto de um ponto no qual não consiga mais se regenerar e, se esse limite for ultrapassado, aproximadamente 70% da floresta podem se degradar irreversivelmente nas próximas décadas. A advertência é de Carlos Nobre, cientista climático, membro da Academia Brasileira de Ciências, da Academia Global de Ciências e membro estrangeiro da Academia de Ciências dos Estados Unidos e da Royal Society da Grã-Bretanha. E um dos fatores que pode levar à degradação da floresta — além do desmatamento e da mineração — é a insistência na exploração de combustíveis fósseis, que acelera o aquecimento global. Esse é um tema a ser debatido na COP 30, em Belém, em novembro, que não apenas coloca o Brasil como condutor das discussões, mas, também, aumenta a pressão sobre as pretensões do país para que a cúpula dê certo. Leia a seguir a entrevista.

O Brasil sediará a COP 30. Qual é o impacto político dessa escolha para o país e que mensagem isso passa à comunidade internacional?

É muito importante essa escolha e a liderança que o Brasil deve assumir. Foi muito inspirador quando o presidente Lula, ainda presidente eleito, anunciou na COP 27, no Egito, a proposta de sediar a COP 30, em Belém. As Nações Unidas aprovaram essa candidatura no ano passado, o que tem um significado enorme. Lembre-se de que, em 1992, ocorreu a Rio 92, uma das conferências mais importantes das Nações Unidas, que trouxe à tona os riscos ambientais que o planeta enfrentava. Foi ali que surgiram as COPs sobre mudanças climáticas, biodiversidade, desertificação e proteção dos oceanos e rios. Agora, 33 anos depois, o Brasil lidera pela primeira vez uma COP em um momento de emergência climática. A escolha de Belém também foi acertada porque representa a interseção entre a crise climática e a preservação da biodiversidade. A Amazônia, por sua vez, está próxima de um ponto de não retorno, e os impactos das mudanças climáticas sobre a região são enormes.

O senhor acredita que o governo está adotando uma abordagem consistente para liderar as negociações climáticas globais ou ainda há contradições entre discurso e prática?

Está adotando, em quase todos os setores, posições, políticas e implementações muito positivas para liderar essas negociações. Se olharmos as 29 COPs realizadas até hoje, as mais significativas foram a 21, em 2015, em Paris, onde foi assinado o Acordo de Paris, e a 26, em 2021, em Glasgow (Escócia), que reforçou o compromisso global de limitar o aquecimento a 1,5°C. O Brasil está tomando medidas importantes, como acelerar a redução do desmatamento, que é responsável por 70% a 80% das emissões brasileiras. A grande inconsistência na política ambiental brasileira está no fato de o país ainda defender novas explorações de combustíveis fósseis, como a prospecção de petróleo na Margem Equatorial, no Amapá. Isso é problemático porque, segundo a ciência, atingimos 1,5°C de aquecimento e precisamos zerar as emissões muito antes de 2050. Portanto, essa política vai contra os compromissos climáticos globais e prejudica a liderança do Brasil.

O presidente Lula tem buscado equilibrar compromissos ambientais com políticas de desenvolvimento. É possível conciliar crescimento econômico com preservação ambiental sem comprometer metas climáticas?

Atualmente, os produtos da biodiversidade representam apenas 0,3% a 0,4% do PIB brasileiro, enquanto a carne bovina corresponde a 6%. O Brasil pode investir fortemente na neoindustrialização sustentável, utilizando energias renováveis, inteligência artificial e inovação tecnológica para tornar a economia mais competitiva. A transição para um modelo de agricultura e pecuária regenerativa também é fundamental, pois essas práticas são mais produtivas, mais lucrativas e mais resilientes aos eventos climáticos extremos. Portanto, sim, é possível crescer economicamente e, ao mesmo tempo, reduzir o impacto ambiental.

A exploração de petróleo na Foz do Amazonas tem sido um tema polêmico. Qual a sua opinião sobre a insistência do governo nesse projeto e como isso pode afetar a imagem do Brasil na COP 30?

Não podemos abrir novas explorações de combustíveis fósseis. A ciência mostrou que, se continuarmos a explorar todas as minas de carvão, poços de petróleo e reservas de gás natural existentes, estaremos emitindo 40% dos gases de efeito estufa em 2050. Isso significa que novas explorações de petróleo são incompatíveis com a meta de limitar o aquecimento global. O correto seria parar rapidamente de explorar o que já existe e acelerar a transição para energias renováveis.

Os países desenvolvidos ainda não cumpriram a promessa de contribuir com US$ 100 bilhões anuais para ações climáticas em nações emergentes. O Brasil deveria pressionar mais por esses recursos? Como?

Os países desenvolvidos prometeram, na COP 16, em 2010, a criação de um fundo de US$ 100 bilhões anuais, a partir de 2020, para ajudar os países em desenvolvimento a reduzir emissões e se adaptar às mudanças climáticas. No entanto, esse compromisso não foi cumprido integralmente e, quando há repasses, grande vem em forma de empréstimos. Na COP 29, um estudo mostrou que, entre 2026 e 2035, os países em desenvolvimento precisarão de US$ 1,3 trilhão por ano, sendo cerca de US$ 500 bilhões para adaptação climática e US$ 800 bilhões para a transição energética. Mesmo diante dessa necessidade, os países ricos só concordaram com US$ 300 bilhões anuais. Além disso, a recente saída dos Estados Unidos do Acordo de Paris compromete mais esse financiamento, já que os EUA eram responsáveis por cerca de US$ 13 bilhões desse fundo.

O Fundo Amazônia tem sido suficiente para conter o desmatamento? A política ambiental brasileira está no caminho certo ou são necessárias medidas mais rígidas?

O Fundo Amazônia é uma iniciativa fundamental e teve um impacto positivo desde que foi reativado pelo atual governo. Países como Noruega e Alemanha foram os principais doadores, com a Noruega destinando US$ 1 bilhão e a Alemanha, US$ 200 milhões. Isso foi conquistado depois que o governo Lula reassumiu, pois o governo anterior praticamente fechou o fundo. O governo lançou, recentemente, o projeto Arco da Restauração, que prevê a recuperação de 24 milhões de hectares na Amazônia até 2050, sendo 6 milhões de hectares até 2030. Essa iniciativa foi estimada em US$ 40 bilhões, mas os primeiros repasses do Fundo Amazônia foram de apenas US$ 100 milhões para comunidades indígenas e quilombolas realizarem restauração florestal.

A geopolítica global está cada vez mais influenciada pelas questões climáticas. O Brasil pode usar sua posição estratégica na Amazônia para ganhar mais influência no cenário internacional?

A Amazônia está muito próxima do ponto de não retorno. Se esse limite for ultrapassado, até 70% da floresta pode se degradar irreversivelmente nas próximas décadas. Isso teria impactos catastróficos, liberando mais de 200 bilhões de toneladas de carbono na atmosfera e desencadeando eventos climáticos extremos em todo o mundo. Além disso, a destruição da floresta aumenta o risco de novas epidemias e pandemias. Pesquisas da Fiocruz e do Instituto Evandro Chagas identificaram 48 zoonoses na região — ou seja, vírus e bactérias que podem ser transmitidos de animais para humanos. Se o Brasil assumir a liderança na preservação da Amazônia, poderá se tornar um protagonista no combate à crise climática. Isso fortalecerá sua posição diplomática e ampliará a influência em fóruns internacionais.

A COP 30 pode ser um marco para a definição de novos mecanismos financeiros que tornem a preservação ambiental economicamente viável?

A COP 30 é a mais desafiadora das conferências climáticas, pois chegamos a um ponto em que as temperaturas globais estão subindo mais rápido do que o previsto pela ciência. Atingimos 1,75°C de aquecimento, um nível que não era registrado há mais de 200 mil anos. O Brasil deve pressionar para que a COP 30 estabeleça um novo mecanismo financeiro robusto, garantindo que a preservação ambiental seja economicamente viável e que os países emergentes recebam investimentos adequados para suas transições energéticas e de infraestrutura sustentável.

Como a oscilação entre governos ambientalistas e negacionistas afeta a credibilidade do Brasil em fóruns internacionais?

O governo anterior era super negacionista. Negava mudanças climáticas, saúde, covid-19, vacinas e uso de máscara. Desmontou grande parte da política ambiental e, agora, há um esforço para reconstruir essa credibilidade. No entanto, a comunidade internacional vê com preocupação a possibilidade de retrocessos futuros. Esse problema não acontece apenas no Brasil. Políticos populistas, de extrema-direita e extrema-esquerda, têm negado a crise climática. Donald Trump voltou ao poder e suas primeiras medidas foram retirar os EUA do Acordo de Paris e liberar novas explorações de petróleo e gás de xisto. No Brasil, governadores de estados como Acre, Rondônia e Mato Grosso defendem políticas semelhantes, flexibilizando leis ambientais para expandir a agropecuária. Se a população continuar elegendo líderes negacionistas, o mundo pode caminhar para um “suicídio ecológico”, ultrapassando 2,5°C, até 2050, e 4°C, até 2100, tornando grande parte do planeta inabitável.

Lideranças indígenas terão espaço na COP 30. O senhor acha que suas reivindicações serão incorporadas às negociações?

O papel das lideranças indígenas na COP 30 será fundamental, pois nenhum grupo protegeu melhor a Amazônia do que os indígenas. Está mais do que comprovado que as terras indígenas são as áreas mais preservadas da floresta, e isso não pode ser ignorado nas negociações climáticas. Entretanto, há um risco real de que as reivindicações indígenas fiquem apenas no discurso. A verdadeira soberania sobre a Amazônia não está na destruição da floresta, mas, sim, na valorização da sua biodiversidade e no respeito aos povos indígenas.

Quais seriam as prioridades que o Brasil deveria defender na COP 30 para garantir um legado climático real?

O Brasil precisa garantir que a COP 30 seja a mais importante de todas as conferências climáticas já realizadas. Para isso, é essencial que todos os países concordem em zerar suas emissões antes de 2050. O próprio presidente Lula já afirmou que essa meta deveria ser antecipada para 2040, e esse deve ser o principal legado da conferência.

A transição energética é um dos pilares do debate global. O que falta para o país avançar nessa agenda?

Mais de 80% da nossa eletricidade vem de fontes limpas. Isso nos coloca em uma posição privilegiada para liderar a transição energética global. O maior desafio do Brasil não está na eletricidade, mas na substituição dos combustíveis fósseis nos transportes. A tecnologia para essa transição existe. Temos carros elétricos com um custo competitivo e são muito mais econômicos a longo prazo. O Brasil tem um grande potencial para expandir o uso do etanol e do hidrogênio verde.

Diante da pressão de setores do agronegócio e da mineração, como o senhor avalia a capacidade do governo de manter compromissos climáticos?

O agronegócio e a mineração são, historicamente, os setores mais resistentes às mudanças ambientais. São os mais negacionistas. No Brasil, 75% das emissões vêm do desmatamento e da agropecuária, e grande parte das queimadas criminosas é provocada pelo avanço da agricultura e da pecuária sobre áreas florestais. O governo precisa acelerar a transição para uma agropecuária regenerativa, que é mais produtiva, mais lucrativa e mais resiliente ao clima. Além disso, é essencial combater a mineração ilegal, que contamina rios e terras indígenas com mercúrio, causando graves problemas de saúde para as populações locais.